Polinizadores em Rede: Ciência Cidadã, Conhecimento Local e Luta por Justiça Ambiental no Vale Encantado (Salvador/BA, Brasil)
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- 10.5281/zenodo.17534403
[225] O Vale Encantado, situado no bairro de Patamares, em Salvador (Bahia, Brasil), abriga cerca de 105 hectares, um mosaico de diferentes ecossistemas formado por brejos, restingas, floresta ombrófila, encraves de cerrados e matas ciliares, corresponde a um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica urbana da cidade — reduzida a menos de 5% de sua cobertura florestal original. Em um território marcado por uma dramática contradição entre a riqueza biológica e a intensa valorização imobiliária, a área resiste como refúgio de biodiversidade em meio à expansão urbana acelerada e às crescentes ameaças associadas às mudanças climáticas. Salvador figura entre as capitais brasileiras bastante vulneráveis aos efeitos dessas mudanças, com aproximadamente 75% da população vivendo em áreas de risco socioambiental. Nesse contexto, o Vale Encantado apresenta-se como área fundamental para a conectividade ecológica na porção leste da cidade à zona costeira, e configura-se como território estratégico para a manutenção dos serviços ecossistêmicos, da qualidade ambiental e da justiça socioambiental urbana (Figura 1). O presente trabalho tem como objetivo relatar a experiência da construção do projeto de ciência cidadã “Guardiões do Vale Encantado: Observação e monitoramento dos polinizadores”, desenvolvido de forma colaborativa entre o Coletivo SOS Vale Encantado, a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Polinização (INPOL). A iniciativa integra Ciência Cidadã, conservação da biodiversidade e interação com a sociedade, demonstrando como a coprodução de conhecimento sobre polinizadores pode impulsionar processos de letramento científico, incidência política e fortalecimento do reconhecimento territorial do Vale como futura Unidade de Conservação de Proteção Integral. Metodologia A iniciativa estruturou-se a partir da aproximação entre membros do Coletivo SOS Vale Encantado e docentes da UFBA, que compartilharam informações sobre a biodiversidade local, elaborados para subsidiar os estudos de enquadramento da área em uma categoria adequada de Unidade de Conservação (UC). A partir desse intercâmbio de saberes, foi desenvolvido um estudo acadêmico baseado na análise de interações ecológicas, correlacionando grupos funcionais de polinizadores e a flora associada, o que evidenciou a relevância estratégica do Vale Encantado na manutenção da diversidade funcional e na conectividade ecológica urbana (Figura 2). Com base nesses resultados, elaborou-se uma proposta de projeto vinculada ao componente curricular de extensão universitária, Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS), intitulada “Ciência, Comunicação e Cidadania: Engajamento da sociedade civil em ações para conservação dos serviços ecossistêmicos”, ofertada pelo Instituto de Biologia da UFBA e apoiada pela Pró-Reitoria de Extensão (PROEXT). A ACCS adota como base metodológica os princípios da Ciência Cidadã e participação social, articulando atividades de campo, oficinas com moradores, construção de trilhas temáticas interpretativas e registros fotográficos de polinizadores realizados por estudantes e integrantes do coletivo. Este componente curricular tem como objetivos ampliar a participação pública em temas relacionados à conservação da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos, formar profissionais comprometidos com a solução de problemas socioambientais e estimular a autonomia e a criticidade dos estudantes na busca de soluções sistêmicas (Viana et al, 2023). Seu desenvolvimento baseia-se em metodologias ativas de ensino-aprendizagem (BARBOSA; MOURA, 2013), com ênfase em projetos práticos que integram teoria e prática (SOLOMON; BERG; MARTIN, 1998). Paralelamente, adota-se a ciência cidadã (COOPER; LEWENSTEIN, 2016) como abordagem transdisciplinar para o trabalho conjunto entre acadêmicos e atores sociais, promovendo a produção colaborativa de conhecimento e a troca de saberes (HECKER, 2018). Essa interação contribui para uma compreensão contextualizada dos desafios socioambientais e fortalece o engajamento cívico (SCHIO, 2022). As ações resultantes desse processo incluem palestras dialogadas, atividades de campo, seminários, oficinas, cursos, audiências públicas e bioblitzes, desenvolvidas em parceria com escolas, instituições públicas e privadas, coletivos e movimentos sociais da Bahia. No semestre 2025.2, dando continuidade à prática da disciplina, consolidou-se, a partir do diálogo constante mantido desde o início de 2025 entre docentes do Instituto de Biologia da UFBA e representantes do Coletivo, um tema de consenso: a construção colaborativa e participativa de trilhas temáticas e interpretativas voltadas à observação e ao monitoramento de polinizadores. Essas trilhas são concebidas como espaços de aprendizagem, sensibilização ambiental e valorização da biodiversidade. Além dos docentes responsáveis, a iniciativa envolve estudantes de graduação dos cursos de Ciências Biológicas, Psicologia e Saúde, bem como diversos membros do Coletivo, visando promover, no território do Vale Encantado, ações de turismo cientifico de base comunitária voltadas à observação da vida silvestre, em consonância com a PORTARIA IBAMA Nº 125, DE 2 DE SETEMBRO DE 2025. Como parte das estratégias de engajamento público e letramento científico, PL145/2024. Paralelamente, matérias em jornais de grande circulação estadual contribuíram para dar visibilidade à importância ecológica e social do Vale Encantado, fortalecendo as ações de incidência política. Durante o desenvolvimento dessas atividades, o Vale — situado em uma área de intensa especulação imobiliária — foi ameaçado por uma proposta legislativa (Projeto de Lei n.º 175/2024) que previa a implantação de um sistema viário sobre sua principal lagoa, cruzando a área de norte a sul. Nesse mesmo contexto, o projeto foi selecionado como uma das experiências-piloto do INCT Polinização – INPOL, inserido no eixo Interação com a Sociedade, com o propósito de testar protocolos participativos de monitoramento da biodiversidade de polinizadores e contribuir para a formulação da futura Política Nacional de Monitoramento Participativo da Biodiversidade Polinizadores. Ainda nesse processo, consolidou-se o projeto “Guardiões do Vale Encantado: Observação e monitoramento de polinizadores”, oficializado por meio da parceria entre o INPOL, os estudantes da ACCS, professoras da UFBA - PPG ECOTAV, e o Coletivo SOS Vale Encantado. Desde então, escolas da cidade vêm aderindo à iniciativa, incorporando atividades de sensibilização e conservação em seus projetos pedagógicos e feiras de conhecimento, ampliando o alcance social e educativo do projeto (Figura 3). Resultados O projeto “Guardiões do Vale Encantado: Observação e monitoramento de polinizadores”, que está em andamento, ainda que em processo inicial, tem alcançado resultados expressivos de natureza interdisciplinar e transdisciplinar, contemplando desde a produção científica e educativa até o fortalecimento do engajamento social e político voltado à conservação da natureza em contextos urbanos e à promoção da justiça socioambiental em Salvador, a saber: Dimensão científica: O projeto espera consolidar um processo contínuo de registro e sistematização de dados inéditos sobre as interações planta–polinizador no Vale Encantado, contribuindo para o preenchimento de lacunas sobre a ecologia funcional dos polinizadores na Mata Atlântica de Salvador. A partir das atividades de campo a serem realizadas por cidadãos, pesquisadores e integrantes do coletivo, será fomentado um banco de registros fotográficos georreferenciados, que documentará a diversidade de espécies e as relações tróficas entre a flora local e diferentes grupos de polinizadores. Esses registros serão utilizados para a construção de uma base de dados de referência, subsidiando análises comparativas sobre frequência de visitação, fenologia floral e composição de guildas funcionais. Além disso, o projeto publicou o artigo de divulgação científica “Invisíveis, mas essenciais” na revista local AMO Salvador, ampliando o acesso público ao conhecimento sobre polinizadores e seus serviços ecossistêmicos, e fortalecendo o diálogo entre ciência e sociedade. Dimensão educacional: No campo formativo, o projeto tem promovido uma experiência inovadora de ensino-aprendizagem por meio da Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS), disciplina de extensão da Universidade Federal da Bahia (UFBA) intitulada “Ciência, Comunicação e Cidadania: Engajamento da sociedade civil em ações para conservação dos serviços ecossistêmicos”. Os participantes dessa atividade têm atuado de forma integrada em todas as etapas do processo — desde o planejamento das ações até a coleta de dados, a comunicação científica e a mobilização comunitária. A ACCS vem desenvolvendo oficinas participativas com moradores, elaboração de materiais didáticos sobre polinizadores e implantação de duas trilhas interpretativas temáticas dedicadas à observação e monitoramento da fauna polinizadora. Essas trilhas têm se consolidado como importantes espaços pedagógicos e de sensibilização ecológica, utilizados tanto para o aprendizado dos estudantes quanto para o fortalecimento do vínculo dos moradores com o território. De maneira espontânea, a experiência de educação ambiental do projeto começou a transbordar para outros espaços formativos da cidade. Um exemplo emblemático é o envolvimento da Escola Nossa Nova Infância, onde a coordenadora pedagógica — sensibilizada pelas recentes ações no Vale — idealizou uma atividade especial durante a Feira de Conhecimentos da instituição. Propôs a realização de uma ação coletiva de sensibilização sobre a criação e conservação do Refúgio de Vida Silvestre (REVIS) do Vale Encantado, através da exposição dos banners educativos na escola, e a elaboração de um abaixo-assinado que será circulado entre os estudantes, professores e familiares durante os dois dias do evento, que acontecerá entre os dias 6 e 7 de novembro deste ano. Essa ação espontânea simboliza o alcance transformador do projeto, mostrando como a ciência cidadã e a educação ambiental crítica podem gerar ondas de engajamento fora do espaço universitário, mobilizando novas gerações em defesa da biodiversidade e do território. O envolvimento direto dos participantes — sejam estudantes universitários, moradores ou crianças — vem fortalecendo o letramento científico, o sentimento de pertencimento e a corresponsabilidade socioambiental, transformando o Vale Encantado em um laboratório vivo de aprendizagem, cidadania e esperança. Dimensão política e institucional: O fortalecimento das redes de cooperação e a visibilidade alcançada pelas ações do projeto resultam em importantes conquistas institucionais e políticas. O Guardiões do Vale Encantado foi selecionado como uma das experiências-piloto do INCT Polinização – INPOL, integrando o eixo Interação com a Sociedade. Essa inclusão representa o reconhecimento nacional do potencial do projeto em testar protocolos participativos de monitoramento da biodiversidade de polinizadores, com vistas à formulação do Programa Nacional de Monitoramento Participativo de Polinizadores — uma política pública inovadora que pretende ampliar a participação social na ciência e na conservação. No âmbito local, o projeto também atuou como catalisador de mobilização social e incidência política. Durante seu desenvolvimento, a Câmara Municipal de Salvador apresentou o Projeto de Lei nº 175/2024, que previa a abertura de um sistema viário atravessando a principal lagoa do Vale Encantado — o que representaria uma grave ameaça ao ecossistema. Em resposta, membros do coletivo, estudantes e moradores organizaram uma ampla campanha de mobilização, com manifestações públicas, produção de conteúdo nas redes sociais e cobertura pela imprensa. A pressão popular gerada contribuiu para a retirada da via do texto final do PL, demonstrando o poder do engajamento cidadão e da coprodução de conhecimento científico como ferramentas de defesa ambiental e de influência sobre decisões públicas. Esse movimento também contribuiu para a retomada do processo de criação do Refúgio de Vida Silvestre (REVIS) do Vale Encantado, reforçando sua proposta de enquadramento como Unidade de Conservação de Proteção Integral. O projeto, portanto, passou a ocupar papel central na articulação entre ciência, participação social e governança territorial. Dimensão socioterritorial: O Vale Encantado abriga um dos últimos fragmentos de Mata Atlântica urbana de Salvador. A área, com aproximadamente 105 hectares, contém mais de 200 espécies de árvores e uma fauna diversificada, incluindo espécies de aves, répteis, mamíferos e invertebrados de importância ecológica. Cumpre funções essenciais para a sustentabilidade urbana, como regulação microclimática, proteção dos recursos hídricos, retenção de carbono, controle da erosão e conectividade entre habitats naturais e antropizados — especialmente entre o Parque Metropolitano de Pituaçu e a zona costeira de Patamares. Essas funções têm sido fortalecidas pelo protagonismo comunitário e pelo envolvimento direto de mais de 150 apoiadores — entre moradores, estudantes, professores, pesquisadores e ambientalistas — que atuam de forma contínua em ações de monitoramento participativo, educação ambiental, ecoturismo e comunicação científica. O projeto tem, assim, ampliado a percepção social sobre o valor ecológico e simbólico do Vale, transformando-o em referência para a conservação urbana participativa e para o enfrentamento das vulnerabilidades climáticas da capital baiana. Implicações e Conclusões A experiência do projeto Guardiões do Vale Encantado evidencia que práticas de ciência cidadã estruturadas em agendas territorializadas têm o potencial de integrar de forma efetiva o conhecimento científico, os saberes locais e as demandas sociais. Ao articular pesquisa, educação e mobilização comunitária, o projeto demonstrou que a coprodução de dados ambientais pode funcionar como um instrumento de incidência política e de fortalecimento das capacidades locais para a gestão do território. No contexto urbano de Salvador — marcado por fortes disputas territoriais, desigualdades socioambientais e vulnerabilidade climática, o engajamento social e a produção participativa de conhecimento se revelam estratégias decisivas para a conservação da biodiversidade e a promoção da justiça ambiental. A construção coletiva do monitoramento de polinizadores mostra-se não apenas como um meio de geração de informação científica, mas também um processo educativo e emancipatório, capaz de sensibilizar, formar e engajar diferentes atores sociais em torno da proteção de um bem comum. O caso do Vale Encantado ilustra como a ciência participativa pode reconfigurar relações entre sociedade e natureza, fortalecer identidades coletivas, ampliar o repertório político das comunidades urbanas e influenciar decisões institucionais, como a revisão de propostas legislativas e o avanço no processo de criação de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. Assim, o projeto reafirma a importância da ciência cidadã como ponte entre o conhecimento e a ação, transformando a pesquisa em prática social e a conservação ambiental em um exercício concreto de cidadania e corresponsabilidade.